‘Todos precisamos de novas experiências para crescer’, diz premiada autora americana 2g3q2d
Ottessa Moshfegh desmancha a memória humana em 'Ressaca', livro que chega ao Brasil após 10 anos de sua publicação original 714v

É difícil precisar quando uma carreira literária começa. Às vezes, ela vem de uma bagagem extensa de anos de inspiração e vivências de um autor, outras vezes surge como hobby no meio da vida e se estabelece como carreira. Algumas vezes, trata-se de expurgar insatisfações e males observados durante uma existência inteira. A escrita pode ser tudo, menos uma trajetória convencional. Para Ottessa Moshfegh, é menos ainda.
A norte-americana de ascendência iraniana e croata começou a escrever seu primeiro romance, Ressaca (Em inglês, McGlue), em 2014, após ficar obcecada com um recorte de jornal que leu certa vez. Os papéis continham um artigo sobre a história de um homem chamado McGlue, junto de um anúncio de que esse homem havia sido absolvido da acusação de matar um colega marinheiro em Zanzibar, no leste africano. Ele havia sido considerado mentalmente incapaz de responder pelo crime pelo juiz do caso.
O acaso que uniu Moshfegh a descobrir essa história a acompanhou em todo seu processo criativo. Ela não sabia onde a história chegaria, nem o que aconteceria com McGlue. Ele, que estava sendo ficcionalizado por Ottessa, parecia ser uma surpresa para ela também.
Tomada de certa impulsividade ao entrar em contato com essa história, Moshfegh revelou uma marca que se tornaria sua em toda a sua carreira. Sem pensar muito nos rótulos que suas histórias irão lhe servir, ela consegue extrair o que há de mais escondido e portanto, desconfortável, na existência humana. Sua obra revela o ser humano em situações degradantes impostas pelo desencaixe com o meio, com a nação em que vive — vide o nordeste estadunidense como região de origem de seus personagens, não por acaso — ou as expectativas que os cercam.

No romance reverenciado até agora, Ressaca, que acaba de ser lançado no Brasil pela editora Todavia, ela manteve o nome e a história do homem que leu no jornal: McGlue, um marinheiro, acorda certo dia após um consumo exagerado de álcool. Suas roupas estão ensanguentadas e ele não se lembra de nada do que aconteceu na noite anterior. Com as memórias em suspenso, o que faz o homem voltar à realidade é ser preso nos fundos do barco pelos colegas de trabalho, que lhe acusam de ter matado Johnson, também marinheiro. A medida que vai recuperando suas memórias, McGlue consegue finalmente entender o que levou à morte de Johnson.
A VEJA, a escritora detalha sua preferência por personagens perturbados e suas tensões, além de sua entrega durante o processo de escrita de Ressaca.
O que estava acontecendo em sua vida em 2014, ano em que Ressaca foi publicado, e nos anos anteriores à sua escrita? Houve algum evento específico que a levou a escrever esta história?
Escrevi Ressaca de 2009 a 2011, enquanto cursava a pós-graduação na Nova Inglaterra. Antes dele, eu me identificava como contista. Um dia, na biblioteca, descobri um pequeno artigo de jornal em um jornal de Salem, Massachusetts, por volta de 1850, e ele me inspirou a escrever esta obra maior. Eu queria saber o que havia acontecido, e a novela era a resposta. Em 2014, eu havia me mudado de Los Angeles para Oakland, Califórnia. Eu tinha uma bolsa universitária com um subsídio para escrever por dois anos, dois anos que eu poderia dedicar exclusivamente ao meu trabalho, e não precisava me esgotar em um emprego de outra forma. Então, quando Ressaca ganhou o prêmio Fence em prosa e foi publicado, senti que todo o cansaço valeu a pena. Eu havia conquistado um lugar de sorte e levei isso muito a sério. Em 2014, eu estava editando Meu nome era Eileen e escrevendo a maioria dos contos que aparecem na minha coleção, Saudades de Outro Mundo.
Há algo que conecte McGlue a seus outros personagens, como Eileen, ou mesmo à protagonista de Meu Ano de Descanso e Relaxamento?
Muitos dos meus protagonistas vivenciam o tédio clássico, que é o desconforto da própria consciência. McGlue, Eileen e a protagonista de Meu Ano são todos americanos do nordeste dos Estados Unidos. Eles também são partes de mim.
Há uma ideia de confinamento que aparece neste livro e em Meu Ano de Descanso e Relaxamento, embora em contextos diferentes. O que é possível levar — ou o que é terrível — desses confinamentos aos quais somos submetidos na vida moderna?
Isso também se aplica a Eileen. A narradora trabalha em uma penitenciária juvenil. Ela descreve sua cidade natal como uma prisão pessoal também. O confinamento impõe pressão, o que é uma condição perfeita para a narrativa; um personagem precisa se mover, se deslocar, se transformar, se adaptar, escapar para sobreviver. O que posso tirar da ideia de confinamento é que ela pode proporcionar segurança. Ou pode ser uma armadilha mortal, especialmente se você estiver isolado e sozinho. Todos nós precisamos de energia renovada e novas experiências para crescer.
Durante a história de McGlue, sua memória lhe é retirada, algo fundamental para a composição da personalidade humana. Como foi o processo de dar voz a alguém que estava sendo tão severamente reprimido?
Foi fascinante para mim sentir que estava vivenciando lembranças junto com McGlue. Por exemplo, o motivo da trama principal de Ressaca, que eu não havia reconhecido — até o momento em que o escrevi — qual era. O processo foi um pouco como um exercício de atuação nesse sentido. Eu só precisava ser um canal e fornecer a atenção e o silêncio para que a voz de McGlue pudesse ser ouvida.
Você acha que a repressão ainda é uma característica central dos seus personagens hoje? É algo sobre o qual você ainda quer falar?
Talvez não nos mesmos termos. Hoje em dia, trabalho com temas mais explícitos, como “sentimentos”, “relacionamentos” e “amor”. A repressão é um fator em muitos cenários humanos, claro. Mas acho que a autocensura e a negação são mais interessantes do que a repressão. A repressão implica que se esteja ciente daquilo que está sendo reprimido. Não é apenas uma falta de noção ou de consciência, é um ato deliberado e violento. Implica um inimigo, um empurra-empurra. Podemos reprimir e podemos ser reprimidos, e é a dor de estar sob tanta pressão que cria a tensão interior.
Em uma entrevista alguns anos atrás, você mencionou que escrever Ressaca foi quase como libertar algum tipo de “demônio mágico” de você, algo que despertou sua inspiração. Hoje, depois de mais de 10 anos da publicação deste livro, você consegue explicar racionalmente o que sentiu quando começou a escrever?
A arte de escrever ficção exige que você não escrutine algumas coisas, os fenômenos indizíveis, e nunca dissipe a magia necessária para escrever um romance. Se algo parece mágico, é mágico. Eu adorava escrever Ressaca, mas como pessoa, ele me assustava. Ser possuído por alguém com tanta dor, em tanta escuridão e ilusão, nem sempre foi um prazer. A inventividade da linguagem narrativa de McGlue e seu humor, no entanto, me cativaram.
Esse sentimento já se repetiu nos anos seguintes, em outros livros que você escreveu?
Cada livro é completamente diferente.
Você disse que a estranheza é uma marca registrada do seu trabalho. Estamos caminhando para um tipo de ficção que precisa da estranheza para se expressar?
Quando você não é conformista, os conformistas dizem que você é esquisito. É um rótulo com o qual me acostumei desde o jardim de infância. Tentar ser esquisito é o que pessoas chatas fazem para parecer interessantes. Então, não preciso me inclinar para nenhuma direção. Escrevo o que acho emocionante e significativo.
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